Por que vc não precisa se revoltar (tanto) com as traduções de comédia

By Lu Xavier - junho 29, 2019



Volta e meia a gente se pega revoltado com algumas traduções que forçam a barra do texto original, principalmente em se tratando de comédia. Comédia é realmente muito difícil de se traduzir porque, a depender da piada, tem todo um contexto cultural que não se traduz numa legenda ou mesmo simples questões estruturais da palavra que não se encaixam na tradução literal (pra gerar o efeito humorístico pretendido).

Eu tenho uma especial resistência com a tradução de títulos de séries e filmes (principalmente séries). Por exemplo, todo mundo sabe qual série é "Friends", "South Park", "Orange is the New Black". Então por que sair traduzindo tudo? Ainda que o nome fosse em alemão ou em outro idioma difícil (mas com letrinhas ocidentais, né). O problema é que ao conversar sobre séries numa eventual tentativa de socialização (vamos supor que quem assiste a séries tenha vida social), o papo pode ficar truncado (como já vivi diversas vezes): 

Fulano: Tem uma cena da série Sob Medida...
Eu: Não conheço essa série.
Fulano: É sobre uma modelo que morre e reencarna no corpo de uma advogada acima do peso...
Eu: Ah! Vc tá falando de Drop Dead Diva!!!
(e ainda saio como a arrogante)

Mas a culpa é minha. O correto é nunca falar socialmente sobre séries (a conversa sempre acaba em spoiler e ranger de dentes).

Na própria Netflix, muitas séries não têm seus títulos traduzidos. Mas algumas, não sei qual o critério, eles resolvem traduzir. Foi o caso de "Bonding" (com malícia do duplo sentido, já que bonding  significa o ato de se conectar emocionalmente com alguém, mas também está implícito na ideia de aprisionamento/amarração/bondage das práticas de BDSM - que é a essência da série), que em português virou "Amizade Dolorida".
Minha revolta começou pela tradução (à base de trocadilho "bobo") que dá a ideia de uma comédia bem pastelão, que, na prática, é tudo o que a série Bonding não é. Se dependesse só do título eu jamais teria dado uma chance à série. Mas como sou pesquisadoura (!), dei o braço a torcer e gostei bastante. E se parar pra pensar, essa tradução foi a mais criativa para se encaixar no duplo sentido do título original (embora, infelizmente, no nosso idioma "soe" como um título bobinho).
Com relação ao objetivo da tradução, o essencial foi atingido: o comprometimento de [re]criar um efeito humorístico no que é chamado, em termos técnicos, de "língua de chegada" (para a qual a tradução é realizada, que no caso foi o português).



Em outro momento da Netflix, no especial de stand-up "Comediantes do Mundo", Enissa Amani (C8:E1 - Alemanha), iraniana radicada na Alemanha, chamou a atenção para a legendagem da Netflix do seu primeiro especial também em exibição na plataforma, "Ehrenwort" (curiosamente, não traduziram o título deste!): 

Falei muito a palavra "alter" no sentido de "cara", no primeiro especial. Como sabem, gosto de falar isso. Como sou de Frankfurt, pronuncio como no estado de Hesse: "Aller". [...]
"Então fiz isso, aller."
"Foi o que aconteceu, aller."
O legendador da Netflix traduziu como "Alá"!
Devem ter pensado: "Ela é iraniana, essência de terrorista".

Netflix, não sei qual motorista do Uber vocês contrataram pra traduzir assim!  
No caso, houve provavelmente um erro de "audição". Não deveria haver essas intervenções no roteiro escrito (pelo fato do stand-up ser executado como uma conversa espontânea), e o tradutor partiu de uma escuta, que, provavelmente, não entendeu a gíria "aller", por não ser nativo da região (Frankfurt). Mas, mesmo nesses casos, é preciso ter o cuidado do tradutor em se inserir na cultura do que é chamado "língua de partida" para poder compreender e adaptar a melhor tradução para a "língua de chegada" (a ser traduzida, a língua-alvo). O equívoco aí, portanto, não foi de tradução em si, mas de entendimento original (pela falta de experiência cultural mais completa por parte do legendador). 
*Legendador aqui é sinônimo de tradutor.

Enissa Amani no seu primeiro especial da Netflix à esqueda (Erehnwort), e no Comediantes do Mundo à direita, fazendo piada com a tradução do primeiro.
(imagens Netflix)


Já na série "O Método Kominsky", também da Netflix, em dado momento o personagem de Michael Douglas relata para amigos que está tendo um dia ótimo, pois: sua próstata não vai matá-lo, seu pau~ sobe e ele arranjou trabalho. Ao que um dos amigos responde (na tradução): 

Pode pedir a música no Fantástico.

Se você assistiu a esse episódio e cerrou o punho nessa hora, me diga se você entendeu o que foi dito em inglês. Até eu que sou fluente (é o que coloco no meu currículo), tive que ouvir mais duas ou três vezes até alterar a legenda para ler no original. A fala original foi:
That´s the geriatric hat trick.
Daí dei um Google para entender o que significava hat trick: é uma espécie de "prêmio" por três vitórias em um campeonato (no caso de Fórmula 1 seria conquistar a pole position, fazer a volta mais rápida e vencer a corrida; no caso do Futebol seria o jogador fazer três gols pelo seu time).
Ah. Agora entendi qual seria o truque da cartola geriátrico (the geriatric hat trick), que se fosse traduzir de forma literal não iria fazer sentido. Pedir música no Fantástico foi realmente uma boa sacada. Haha. Parabéns, legendador da Netflix (desta vez).
Essa estratégia de troca de piada acontece quando o tradutor não encontra recursos adequados para transportar uma piada literalmente de uma língua para a outra, e isso exige muita criatividade por parte do tradutor.

Michael Douglas e Alan Arkin em cena de O Método Kominsky, rindo bastante da nossa cara
(imagem: Netflix)


Convenhamos que por algumas ocasiões eu já percebi legendadores da Netflix militando nas legendas (e neste caso, eu sou contra o ativismo de legenda que se distancia do conceito de "pequenas intromissões na tradução").
Em todos os outros casos, a tradução do humor (em comédia ou em outros gêneros) é sempre muito difícil, logo toda tentativa é louvável (quase toda, convenhamos).

O doutor em letras e linguística John Robert Schmitz define a questão:

A resposta à pergunta se é possível traduzir o humor é: em termos.

Para esclarecer, o pesquisador português Luís Felipe Mesquita aponta estratégias (tradução direta, tradução oblíqua) através das quais o legendador pode fazer uso para solucionar a problemática nas traduções, mas aí existiria uma autonomia do legendador em escolher a estratégia mais orgânica, digamos assim.

Através da utilização destas estratégias tornar-se-á possível efectuar a tradução de uma forma mais concisa e correta. Para que seja possível ultrapassar essas dificuldades na tradução, o tradutor não só pode optar por umas determinadas estratégias tradutórias como também é necessário que ele tenha um bom conhecimento da língua e da cultura, tanto da Língua de Partida como da Língua de Chegada.

Sendo assim, a tradução nunca é perfeita, mas sempre aproximada (principalmente se houver desentendimentos verbais, estereótipos culturalmente distintos). 

Portanto, não transforme a experiência de assistir a uma série ou a um filme num jogo de apontar a todo momento as "falhas" de tradução com o objetivo de corrigir o legendador. 

Encare as traduções como um "mal necessário" e seja feliz, ou se inspire na Enissa Amani e faça piada com elas (de preferência num especial patrocinado pela Netflix). 

Fazer sentido acaba sendo um objetivo mais importante do que preservar questões culturais e linguísticas, que são ignoradas em nome de um entendimento mais "familiar" da obra.


Referências consultadas:
ALEIXO, Ricardo Machado Paiva. Fawlty Titles - A legendagem abusiva de uma sitcom.  Monografia de conclusão de curso em Letras-Tradução da Universidade de Brasília. Brasília - DF: 2014.
MESQUITA, Luís Filipe Pernão. Análise da tradução de guiões da série de humor britânica: "Monthy Python´s Flying Circus". Dissertação de Mestrado em Línguas e Linguística - Escola de Ciências Sociais, Universidade de Évora. Portugal: 2017
SCHMITZ, John Robert. Humor: É possível traduzi-lo e ensinar a traduzi-lo? TradTerm, 3, 1996, p. 87-97.



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