Comfort serie não é sinônimo de leveza

By Lu Xavier - setembro 15, 2021



Nem toda série de comédia é comfort serie, Law & Order é comfort serie.


Bam! É com esta afirmação que eu começo este post necessário, baseado na tese (maravilhosa!) da Melina Meimaridis (doutora em comunicação pela UFF) sobre Comfort Series. A tese explora o conceito de Comfort Serie dentro da chamada Feel Good Television, atribuindo importância sociológica ao tema, uma vez que a ficção tratada nas comfort series organiza de uma certa forma a realidade, reforçando a segurança e a confiança do telespectador nas instituições sociais frente ao caos do mundo contemporâneo. 


Neste post, resumiremos os principais pontos que você precisa saber sobre comfort series (e que todos os outros sites e blogs concorrentes não sabem, pois insistem em enquadrar comfort serie como "aquela série que você não precisa pensar" ou "para assistir repetidas vezes sem enjoar" ou ainda "para rir sem compromisso").


Então vamos lá!


1. Mundo social ordenado


Em primeiro lugar, a pesquisa parte do contexto das séries estadunidenses, cujo american dream é promovido. Nesse sentido, a construção de mundo nas referidas séries se dá de forma ordenada para sustentar o american dream (ou os ideias dominantes de uma sociedade, de forma mais generalizada, como por exemplo a ideia de que as oportunidades de ascensão social e material estejam ao alcance dos personagens, bastando eles terem coragem, talento e se esforçarem para tanto). Enquanto você tem um dia difícil de trabalho, ao ligar a TV e ver a Rachel de Friends conseguindo emprego em Paris ao topar com um amigo na rua, você diminui a sua ansiedade porque você acredita nas instituições sociais ficcionais de que as coisas em algum momento vão dar certo.


As instituições sociais ficcionais são as delegacias, os hospitais, o Poder Judiciário, a família, a escola, a igreja, e tantas outras instituições reais que são representadas nas séries, mas de maneira ficcional. Apesar de serem representadas na ficção de forma idealizada (definindo como as coisas são e como as coisas devem ser), estão conectadas com as instituições sociais reais, na medida em que ajudam a construir uma expectativa e um imaginário sobre elas.


A família em Full House, o ambiente de trabalho em The Office e o serviço político administrativo
em Parks and Recreation são as instituições sociais ficcionais representadas nas séries

Ao definirem as "regras do jogo" de como uma instituição social ficcional funciona, as comfort series reiteram uma metanarrativa de ordem e segurança associada às essas instituições.

As instituições sociais ficcionais reiteram mitos de profissionais como heróis, altruístas e éticos. Reforçam, ainda, valores como a ética trabalhista, a felicidade suburbana, os valores cristãos, dentre outros. A narrativa mítica segue uma lógica de articulação de uma estrutura binária de bom x mau, egoísmo x altruísmo etc., conduzindo, por meio da repetição, a uma repressão das contradições, incertezas e ambiguidades.


2. Dinâmica repetitiva que intercala momentos de equilíbrio, desequilíbrio e reequilíbrio


Em segundo lugar, para que o mundo ficcional fique ordenado existe uma dinâmica de repetição, permitindo certa previsibilidade. Com essa previsibilidade, a comfort serie pode abordar os mais diversos anseios existenciais ou conflitos cotidianos (morte, perda de emprego, perversidade humana), pois em dado momento (no mesmo episódio ou ao longo da temporada) eles serão resolvidos, reequilibrando o mundo social da ficção. Nesse sentido, Melina Meimaridis enquadra séries como Grey´s Anatomy, Criminal Minds e Law & Order: SVU na categoria comfort. Ao final de cada episódio de SVU, por exemplo, a equipe de policiais e promotores é bem sucedida na resolução do crime, embora essa solução seja sempre provisória, já que novos episódios trarão novos conflitos a serem resolvidos. 


Episódio "Comic Perversion" de Law & Order: SVU. Comediante polêmico faz piadas sobre estupro depois de ter sido acusado
de estupro. Clima tenso que a diva Olivia Benson e sua equipe vão ajudar a resolver

Nessas narrativas, os personagens enfrentam desequilíbrios, que podem ser: pontuais (em um episódio), como por exemplo no episódio "Spoiler Alert" (03x08) de How I Met Your Mother, em que as manias dos amigos e da namorada do personagem Ted são expostos, e ele ou as aceita em nome do amor ou corta relações; prolongados (ao longo de uma ou mais temporadas), como é o caso da gravidez que se apresenta em Jane The Virgin; ou estruturais, que são desequilíbrios constantes que dão fôlego à narrativa e estão relacionados às próprias instituições sociais ficcionais, como é o caso dos conflitos de família em Modern Family (como por exemplo a dificuldade de relacionamento entre Phil e o seu sogro, Jay; os desentendimentos constantes entre o casal Mitch e Cam, ou a briga entre os irmãos Dunphy).


Desentendimento amoroso em um episódio de How I Met Your Mother; gravidez ao longo da temporada de Jane The Virgin;
e conflito familiar constante em Modern Family (família como instituição social ficcional)


Assim, o mundo das comfort series é organizado e contínuo, com elementos compartilhados com o mundo cotidiano dos espectadores, mas com "garantias" (que são os chamados portos seguros): a desordem e o caos existem na narrativa, mas são em seguida ordenados (ou reorganizados) com o alcance de um ideal social (diferente do que acontece na vida real, onde nem sempre o ideal é alcançado, e a desordem e o caos imperam). O que ajuda a organizar o caos são as instituições sociais ficcionais.


3. Resolução simplista de conflitos 


Em terceiro lugar, os conflitos levantados na comfort serie têm uma resolução bem definida, também considerada uma "pseudo" resolução, de modo a sustentar o american dream de uma história conduzida para o sucesso.


Um exemplo disso é a personagem Rachel, de Friends, que começa a série fugindo do seu casamento, arranja emprego no Central Perk, pede demissão da cafeteria, no mesmo episódio consegue outro emprego, no episódio seguinte vai trabalhar na Bloomingdale´s sem experiência profissional em moda, consegue alcançar a gerência da Ralph Lauren, é despedida e ao esbarrar em um amigo consegue emprego na Louis Vuitton de Paris. Nesse meio tempo, Rachel engravida e se torna mãe solo sem viver o drama de conciliar carreira e maternidade.


Rachel Green é mãe solo enquanto vive o sonho do pleno emprego


Outro exemplo está na série Gilmore Girls. A trajetória da personagem Lorelai Gilmore incorpora o mito do "american dream" e do "self-made man", por ter engravidado aos 16 anos, saído de casa, arranjado um trabalho como empregada de uma pequena pousada e, com todo o seu trabalho duro e determinação, conseguiu ser dona da sua própria pousada.


Gilmore Girls traduzem o sonho americano de que tudo pode ser, só basta acreditar

Não há frustração de longo prazo. Os conflitos complexos são resolvidos de forma simples e a vida segue. O espectador quer acreditar que a vida pode seguir de forma simplificada, para confortar as suas emoções, sendo esta uma sensação que as séries mais "sofisticadas" não se propõem a produzir.


As comfort series não deixam de ser mecanismos que auxiliam no enfrentamento da ansiedade, uma vez que seu telespectador passa a se sentir bem e principalmente seguro.


O conforto das comfort series seria produzido, portanto, pela sensação de segurança e organização da realidade.


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Referências:

MEIMARIDIS, Melina. "Comfort Series": teoria para além da TV de qualidade. (p. 157-168)

MEIMARIDIS, Melina. "One Chicago: instituições ficcionais e Comfort Series na televisão estadunidense". Afonso de Albuquerque, orientador. Tese (doutorado) - Universidade Federal Fluminense. 350 f. Niterói, 2021.






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