Hacks: conflito de gerações na comédia [spoiler alert]

By Lu Xavier - julho 17, 2021

Como no instagram o que predomina é a indicação fast-food, vou me dar ao luxo de usar o meu veículo blog para uma resenha crítica mais consistente das indicações de lá.


Recentemente, eu vi uma entrevista no "Pânico na Jovem Pan" em que levaram uma humorista de tik tok da geração Z, Isadora Nogueira, com 2 milhões de seguidores, e a humorista roteirista da geração y / millennial Mhel Marrer, com especial na Netflix e carreira consolidada no stand-up. A humorista gen Z contou que todas as vezes que o seu público critica uma piada, ela remove o vídeo do ar e pede desculpas. Chegou a contar sobre uma piada que fez sobre as enfermeiras deixarem o seu braço roxo e que, após críticas dos profissionais de enfermagem, apagou. 


Já a Mhel Marrer fez piada sobre a esquerda, a direita, o mercado negro de tráfico de criancinhas, mandou todo mundo se foder. E foi bem engraçada (sou suspeita, pois sou millennial).


Notem que não é possível fazer um juízo de valor sobre qual a "melhor forma de fazer comédia", principalmente julgando do alto da sua própria geração. Cada uma tem o seu público e querer uniformizar a forma de fazer comédia é matar a própria comédia (pois comédia é transgressão).


Fiz essa introdução para entrar na série Hacks, da HBO Max e indicada ao Emmys em diversas categorias.


Hacks: Ava e Deborah Vance fazendo a tour do clube de comédia, também conhecido como "museu" para a Deborah

Em Hacks o conflito é ainda maior: gen Z x baby boomer. Mas no que a série parece pecar é na premissa do cancelamento da gen Z ao invés da baby boomer. A gente vê cada vez mais comediantes de gerações anteriores sendo cancelados na atualidade por conta de declarações e atos que, antes considerados "normais", hoje não são mais tolerados. E como é difícil mudar a forma de agir e pensar de toda uma geração (não é possível virar do avesso), eventualmente a gente vê comediantes derrapando aqui e ali.


A série, ao contrário, traz logo de início que a roteirista gen Z, Ava, é que foi cancelada no Twitter por um comentário considerado homofóbico. É até crível acreditar no seu cancelamento, na série ou na vida real, visto que as novas gerações estão à flor da pele. Isso não deixa a série incoerente, é uma premissa também factível, porém frágil, já que o foco da trama está na carreira consolidada da Deborah Vance (Ava não é ninguém na noite do stand-up, né?). O interessante é que Ava é da própria gen Z, então me parece que a lógica desse sistema de cancelamento que não poupa nada nem ninguém é que um dia o cancelador será cancelado, é só sentar e esperar. (minha opinião atual sobre cancelamento de humorista: me parece uma lógica perversa esse linchamento sem o "devido processo legal, atribuição de pena adequada e chance de recuperação". Uma pessoa que faz uma piada politicamente incorreta é tão cancelada quanto uma pessoa que comete abuso sexual, havendo uma mesma pena de cancelamento para atos de pesos diferentes. O próprio Código Penal atribui penas diferentes para crimes diferentes, existe também a dosimetria da pena, os agravantes, os atenuantes. É pra se pensar. Eu sou tendente a ser mais a favor de uma promoção de respeito e igualdade material no fazer piada a partir de uma abertura dialógica e evolutiva). 


A Deborah Vance, comediante baby boomer, no entanto, está sendo cancelada formalmente da pauta do teatro onde se apresenta (e não por linchamento virtual). Motivo? Ter envelhecido junto com suas piadas.


A série é muito boa, mas seria mais interessante se a Deborah Vance estivesse mais numa situação de cancelamento por opiniões às quais as novas gerações se sentem ofendidas, do que por simplesmente repetir um bom e velho texto no teatro somado ao avançar da idade.


Isso porque, nos Estados Unidos, existe toda uma geração de comediantes baby boomers (e até anterior às baby boomers, como é o caso da Joan Rivers - infelizmente falecida em 2014) que não perderam relevância com o envelhecimento. O que elas talvez não tenham, na sua grande maioria, seja um público de 2 milhões de seguidores, mas saber fazer uma boa piada não as tira de cena. A própria Joan Rivers dizia que um bom comediante é um ator, que sabe repetir uma piada por 40 anos e sempre fazê-la parecer nova.

"As comediantes mulheres têm sorte, porque se você for engraçada, pode ter 125 anos e as pessoas ainda te aceitam." Joan Rivers

Nessa linha, temos a Dercy Gonçalves que não nos deixava mentir.


Dito isto, o ponto positivo de Hacks é que Deborah Vance não aceita as sugestões de piada da Ava (salvo uma ou outra, pra variar). O que ela aceita mesmo é a proposta de mudança de atitude: testar novas piadas; não tolerar opressões machistas no meio; voltar a frequentar os clubes de comédia. Isso é louvável, pois se a Deborah começasse a fazer piada voltada pra agradar a Gen Z, a personagem Deborah estaria mortah.


Com isto, a convivência de gerações de comediantes não precisa ser conflituosa; é possível um caminho harmônico, onde uma pode aprender com a outra, mas mantendo e respeitando as suas singularidades.

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